quinta-feira, 14 de outubro de 2021

OS POÇOS DE ISAQUE

Texto: Gn. 26.18-22 “E tornou Isaque, e cavou os poços de água que cavaram nos dias de Abraão, seu pai, e que os filisteus taparam depois da morte de Abraão, e chamou-os pelos nomes que os chamara seu pai. Cavaram, pois, os servos de Isaque naquele vale e acharam ali um poço de águas vivas. E os pastores de Gerar porfiaram com os pastores de Isaque, dizendo: Esta água é nossa. Por isso, chamou o nome daquele poço Eseque, porque contenderam com ele. Então, cavaram outro poço e também porfiaram sobre ele. Por isso, chamou o seu nome Sitna. E partiu dali e cavou outro poço; e não porfiaram sobre ele. Por isso, chamou o seu nome Reobote e disse: Porque agora nos alargou o Senhor, e crescemos nesta terra” (ARC).


Introdução: todos os povos de características pastoris, como os hebreus em sua vida seminômade, buscavam fugir de lugares áridos para manterem sua própria subsistência e a de seus rebanhos. As civilizações mais antigas e as grandes cidades têm seu nascedouro ou suas origens à margem de um importante rio. Foi assim com o Egito (Nilo), a Índia (Ganges), Inglaterra (Londres - Tâmisa), França (Paris - Sena), Israel (Jordão), Brasil (Amazonas, São Francisco, Paraná, Tocantins, Tietê entre outros). Isso por que a água é fonte de vida e fundamental e essencial para a manutenção da vida na terra. Por essa causa os desertos são desabitados e sem vida, sem água, sem rios, sem árvores e seus frutos, sem gado ou aves, restando-lhe somente a sobrevivência de serpentes, aves de rapina e escorpiões.

1 – Os Poços de Abraão.

Abrão morava em Ur dos Caldeus, na Mesopotâmia (região entre rios), banhada pelo Rio Tigres e o Rio Eufrates, quando foi chamado para ir para “uma terra que mana leite e mel”. Essa expressão significa lugar de terra fértil e próspera, “onde se plantando, tudo se dá” (1).

A necessidade de água era tão intensa que em seu chamado, Abrão seguiu margeando o grande Rio Eufrates, subindo ao Norte para depois descer para o Sul já dentro dos limites da terra da promessa. Sua caminhada de Ur até ao centro da lhe rendeu cerca de 940 km em suas peregrinações, enquanto em uma linha reta levaria apenas cerca de 640 km, porém, havia um deserto enorme para atravessar. Ao chegar na terra prometida Abrão enfrentou fome, ora a fome, geralmente é provocada pela escassez de água, pela seca. Assim, viu-se obrigado a ingressar no Egito e mais tarde peregrinar nas terras filisteias e cavar poços para manutenção de sua vida, seus familiares, seus servos e seus rebanhos. Os períodos de fome e peregrinação em Gerar deram-se antes do nascimento de Isaque. Em Gn. 12.10-20, o patriarca foi para o Egito, de onde trouxe Agar como serva de Sara e em Gn. 20.1, começa sua peregrinação pelas terras dos filisteus, tendo Isaque nascido somente no capítulo 21. Isso posto, seria bom asseverarmos a importância da tradição oral no período patriarcal e a necessidade de se conhecer a história de nossos pais. Isto é, Isaque tomou conhecimento das peregrinações de seu pai por que havia diálogo entre eles. Em sua peregrinação nas terras dos filisteus cavou poços nas terras de Gerar, donde tirou água para sua família e seus rebanhos.

2 – Os Poços de Isaque

Isaque seguiu os passos de seu pai Abraão até mesmo nas meia-verdades, negando que Rebeca era sua esposa, assim como Abraão omitiu o fato de Sara ser sua meia-irmã. E isso por que ambas eram muito formosas. O filho da promessa também enfrentou muitos obstáculos, posto que o seu rebanho havia crescido, aparentemente, mais que o de seu pai, sendo chamado de rico e poderoso.

Em sua peregrinação Isaque fez o que todo filho faria: morar na terra que seu pai recebeu de Deus e cavar, ou melhor, desentulhar os poços de seu pai que os filisteus haviam entulhado. Há aqui uma interessante lição para nós: os filisteus de hoje não estão tão interessados na água, preferindo entulhar, jogar lixo, na doutrina da Igreja.

O contexto aponta para o versículo 1, que diz: “E havia fome na terra, além da primeira fome, que foi nos dias de Abraão; por isso, foi-se Isaque a Abimeleque, rei dos filisteus, em Gerar.”

Notemos que mesmo a terra que Deus prometeu aos patriarcas estava sujeita a secas e consequentemente a fomes e necessidades imprevisíveis. A Bíblia deixa claro que essa fome era diferente da primeira fome nos dias de Abrão (Gn. 26.1) para que não se rotulasse esse episódio como duplicação de texto por conta da crítica bíblica.

Certamente a intenção de Isaque era descer ao Egito exatamente como seu pai, pois em Gn. 26.2, o Senhor orienta o patriarca a não descer ao Egito, pois a descida de Abrão à terra dos egípcios lhe trouxe muitos males – entenda-se Agar e Ismael – mas, ficasse nas terras de Gerar, pois o Senhor seria com ele (Gn. 26.3). Em outras palavras, Deus estava dizendo: “creia na minha provisão” ou “aqui mesmo lhe darei água”, ou ainda: “procure água aqui que você vai encontrar”. Deus abençoou muitíssimo a Isaque. Este semeou e colheu 100 vezes mais para que não aceitasse presentes de Abimeleque, como seu pai havia Abraão feito no passado. Essa história ocorreu cerca de 100 anos após as viagens de seu pai, logo torna-se desnecessário aventar o que já se é sabido: que Abimeleque e Ficol são títulos e não nomes próprios.

Isaque, que conhecia a história de seu pai – como é bom conhecer a história de nossos pais – com bravura, pôs-se a desentulhar os poços de seu velho, porém encontrou obstáculos. Os filisteus não queriam o seu crescimento e a sua prosperidade. Mesmo com a ameaça da fome na terra, a recompensa por sua obediência encontra-se nos versículos 12 a 14: se engrandeceu, prosperou, seus rebanhos cresceram e tornou-se rico e muito grande o varão Isaque e, devido ao seu crescimento, riqueza e prosperidade, os filisteus o invejaram e entupiram os poços que Abraão cavara. Logo que surgiu a necessidade de se obter água, ele resolveu, outra vez, seguir os passos de seu pai e passou a cavar os poços antigos que o velho Abraão tinha cavado, mas que agora encontravam-se entulhados pelos filisteus. Todavia, vemos nessa atitude de seus inimigos um meio de Deus levá-lo de volta à terra da promessa e, especificamente, a Berseba. Foi necessário passar pelo Vale de Gerar para alcançar Largueza (Reobote) e Juramento de Promessa (Berseba).

*Curiosidade: A Mishna, tradição rabínica, parte do Talmude, relata que quando Isaque desentulhou os poços, a água jorrou, mas quando os inimigos tomaram seus poços, os poços secaram. Quando mais tarde devolveram os poços para ele, as águas tornaram a jorrar.

O entulho dos poços não poderiam ser um obstáculo para Isaque, pois ele sabia que sob aquele lixo ainda corriam nos lençóis freáticos, as águas vivas, que há cerca de 100 anos, havia dessedentado seus pais e seus rebanhos. Faz-se oportuno aqui uma breve reflexão, pois os adversários do Evangelho estão querendo entulhar, jogar o lixo do secularismo, do relativismo e da imoralidade em nossas igrejas e em nossas doutrinas basilares. Cabe, portanto, a nós, desentulharmos o quanto pudermos das nossas denominações o lixo doutrinário e litúrgico dos hereges que se dizem cristãos e descontaminar a superfície das igrejas que ensinavam a sã doutrina e orar para que as tais sejam revitalizadas, posto que as águas límpidas do Espírito estão prontas a jorrar onde houver fé genuína (Jo. 4.13,14; 7.38,39).

Por quê os Filisteus entulharam os poços?

Porque invejaram a bênção de Deus sobre a vida de Isaque, que prosperava mesmo em meio à crise e à escassez de pão. Os dicionários definem a inveja como: o desgosto provocado pela felicidade ou prosperidade alheia; desejo irrefreável de possuir o que é de outrem.

Logo, a inveja é o sentimento de quem sofre por não experimentar o bem, o crescimento e a prosperidade do outro; é fruto da necessidade de ter, possuir, o que pertence ao outro. A prosperidade de Isaque causou inveja aos moradores de Gerar e estes resolveram prejudicar o jovem empreendedor que tinha a bênção do Deus Poderoso (Gn. 26.14-16) expulsando-o de suas terras. Porém, os filisteus, que pretendiam fazer o mal a Isaque lhes faziam bem, pois que ao o expelirem de suas terras, na verdade o empurravam cada vez mais para Berseba, a terra da promessa.

2.1 – O Poço de Eseque:

Eseque significa contenda, posto que os filisteus contenderem com Isaque acerca da posse do poço e das águas. Contenda tem o significado de luta, combate, guerra, altercação, rixa, discussão, discórdia, etc. É o mesmo que “discórdia” em Gl. 5.20 (NVI), ou “porfia” (ACF) ou ainda “as brigas” (BLH), sendo uma obra da carne. Portanto, quem cava poço para contender, bebe água amarga e se enche de inveja. Fiquemos com os sábios conselhos do apóstolo dos gentios: “Não vos embriagueis com vinho onde há contenda, mas enchei-vos do Espírito” (Ef. 5.18), e lembrando que “ao servo do Senhor não convém contender, mas ser manso para com todos…” (II Tm. 2,24). Pacífico, o patriarca abriu mão do seu direito e continuou a cavar novos poços.

2.2 – O Poço de Sitna:

Após o episódio de Eseque, o filho da promessa encontrou outro poço que seu pai cavara e ao desentulhá-lo, novamente os filisteus puseram-se frente a ele para fazer-lhe nova afronta. Por ocasião desse ocorrido, Isaque o chamou de Stina, que tem o significado de ódio, de inimizade e acusação. O filho de Abraão foi acusado de tomar os poços dos moradores daquela região. Interessante que a expressão “sitna” vem da mesma raiz que a palavra satanás. Ambas derivam da raiz semítica šṭn, significando hostil ou adversário hostil, oponente. Assim, vemos aqui as mãos do arqui-inimigo de Deus lutando contra o herdeiro das promessas feitas a Abraão. Também vemos em Gl. 5.20 essa expressão, “ódio” e “inimizade”, como sendo uma obra da carne. Como em Rm. 8.8 está expresso que “os que estão na carne não podem agradar a Deus”, devemos deixar esses “poços imundos” (Hino 523 da HC) e buscar beber da fonte de água da vida que procede do Trono de Deus e do Cordeiro (Ap. 22.1) e fazer um convite aos sedentos, como em Ap. 22. 17: “ O Espírito e a Noiva dizem: ‘Vem’! E quem ouve diga: ‘Vem’! E quem tem sede venha; e quem quiser tome de graça da água da vida”.

2.3 – O Poço de Reobote:

A perseverança de Isaque nos traz muitos ensinamentos. Somente quem tem a palavra de Deus e a promessa de que será abençoado em meio à crise (Gn. 26.3), pode permanecer firme em suas convicções. Apesar das contendas em Eseque e do ódio e inimizade destilados pelos seus adversários em Stina, o patriarca continuou cavando poços até que chegou a um lugar onde não havia o aperto e o incômodo de muitos pastores e rebanhos. Cavou um poço e colocou o nome de Reobote, que traz o significado de “alargamento” A perseverança é, sem dúvida, a grande virtude dos vitoriosos. Deus direcionou o filho de Abraão para um lugar de largueza e prosperidade. A insistência do “pedi”, “batei” e “buscai” que ensinou o nosso Mestre em Mateus 7.7, faz-se ver nos passos desse grande homem de Deus. Maior que o rei Midas, das fábulas, Isaque tinha o faro das bênçãos e a bússola da vitória em Deus. Insistiu, perseverou, não desistiu, cavou um poço, cavou outro e mais um até que encontrou paz contra os seus adversários e prosperidade. Que lição de vida: cavemos, pois, porque a nossa perseverança será coroada por Deus. Enquanto cavamos, cantemos como o povo fez em Números 21.16-18, onde o Senhor mandou ajuntar o povo para lhe dar água: “Sobe poço, e vós cantai dele: ‘Tu, poço, que cavaram os príncipes, que escavaram os nobres do povo e o legislador com os seus bordões”.

2. 4 – O Poço de Berseba:

Já abençoado com o poço do alargamento, Isaque chega a Berseba, lugar dantes habitado por seu pai Abraão. O Senhor lhe aparece segunda vez e confirma a Suas Palavras em sua vida como herdeiro das promessas. Ele levanta um altar e arma a sua tenda, enquanto seus servos cavam um novo poço. Nesse ínterim chegam Abimeleque e Ficol para selarem a paz com o Príncipe de Deus, dizendo-lhe: “Agora tu és o Bendito do Senhor” (Gn. 26. 29). Por medo e não por mera diplomacia os habitantes da Filistia vieram fazer uma aliança de paz, pois aquele que um dia havia sido oferecido em holocausto (Gn. 22), tornara-se o homem mais poderoso daquela região.

Berseba significa poço do juramento. Ali Abimeleque jurou nunca mais atacar Isaque, seus pastores e seus rebanhos. Vale ressaltar a semelhança desse evento com o episódio ocorrido nos tempos do pai da fé em Gn. 21.22ss: Esse nome não é uma duplicação de Gn. 21,24-32, como muitos pensam. Seu pai chamou o lugar de Berseba, fazendo alusão aos sete cordeiros oferecidos no pacto: “poço do sete” (sheba). Isaque, por sua vez, dá o mesmo nome que seu pai (Gn. 26.18) devido à descoberta de água no dia que o juramento (shaba) foi feito. Para Abraão aquele era o “poço do sete”, mas para Isaque aquele era o “poço do juramento”, ambas as ideias são expressas pelo mesmo nome, “Berseba”. (2)

A palavra Shibah (sib’â, sete) é uma variante de sheba; (cf. AA: “Seba”). Quer se trate do poço de Abraão, agora reaberto (21:30,31; cf. 26:18), quer de outro (cf. Js. 19:2?), o nome Berseba passa agora a comemorar dois compromissos diferentes. (3)

Sobre o nome Abimeleque e Ficol, Derek-Kidner, afirma que dar o nome do avô (“avitonímia”) foi costume em várias épocas. E detalha esse costume na civilização egípcia nos seguintes termos: “a casa real e uma família de governo provincial mantiveram esta norma lado a lado por quatro gerações, de modo que Ammenemes I nomeou Khnumhotep 1, e seu neto Ammenemes IInom e ou Khnumhotep II. Alternando com eles, Sesóstris I e II nomearam Nakht I e II, e certas negociações se repetiam também. Não obstante, estas não constituem conteúdos literários duplicados”. (4)

Conclusão:

Cavar poços não é tarefa das mais fáceis, requer técnica apurada, pois deve haver perícia na procura, no uso dos instrumentos, desde o mais primitivo, como varinhas em forma de “v” até aos sistemas mais avançados de sondas que pescrutam as cavidades da terra. A Bíblia cita no livro do profeta Jeremias que o povo de Deus (Israel) fizera duas maldades: a) “deixaram a Mim, o Manancial de Águas Vivas”; e b) “cavaram para si cisternas rotas, que não podem conter as águas” (Jr. 2.12,13). Na verdade, o Senhor expressa sua indignação, exclamando: “Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos”. O problema de quem cava cisterna que não pode conter as águas, é enlamear as águas limpas com a lama espalhada por seus próprios pés.

Continuemos cavando nossos poços sem jamais desanimar, mesmo que tenhamos oposição do adversário ou obstáculos por conta das circunstâncias e intempéries da vida, pois o Senhor tem água limpa e pura. Ele faz um convite aos sedentos em Is. 55.1: “ó vós todos que tendes sede, vinde às águas…”.

Temos em Ez. 47, o convite para entrar em um rio de águas purificadoras que saram todas as enfermidades.

Temos nos evangelhos e em Cristo a fonte duradoura que jorra água para vida eterna (Jo.4) e que corre no interior dos que creem conforme as Escrituras (Jo. 7).

Temos na Cruz, a fonte da Redenção, do Perdão e da Reconciliação com Deus (Mt. 27; Mc. 15; Lc. 23. Jo. 19).

Cantemos: “Sobe, poço, brota poço”.

Pr. Guedes


Breve bibliografia:

(1) Pero Vaz de Caminha, trecho da carta escrita ao rei de Portugal, Dom Manuel, sobre o Brasil.

(2) Davidson, F., O Novo Comentário da Bíblia, Ed. Vida Nova, 1997, p. 165

(3) Kidner, Derek, Série Cultura Bíblica, Gênesis, Ed. Vida Nova, 2001, p, 144.

(4) Id., 2001, p. 143


terça-feira, 28 de setembro de 2021

A PITONISA DE ENDOR


Introdução

O assunto é de fato controverso e tem colocado diversos comentaristas renomados em lados opostos. Há quem defende que Deus autorizou e enviou o espírito de Samuel para participar daquilo que seria uma sessão espírita, outros os que entendam como uma narrativa autorizada por Deus no cânon sagrado e outros ainda acredita tratar-se de um fenômeno movido pelo êxtase espiritual ou por efeito de alucinógenos. Afinal, Deus autorizou Samuel voltar dos morto e participar de uma prática que Ele mesmo condenara, a mulher estava movida por um êxtase mediúnico e viu um demônio ou tratava-se de um fenômeno psíquico sob efeito de alguma substância? 

Os Personagens

Saul – filho de Quiz, da tribo de Benjamin, era pastor de jumentas. Foi separado e anunciado pelo profeta Samuel quando o povo pediu um rei e diz as Escrituras que Deus deu um rei na sua ira (Os. 13.11). Era um período de transição depois de 300 anos desde os dias de Josué, o tempo dos juízes. Lemos em Js. 13. 1 “Já estás velho e avançado em dias e ainda muitíssima terra ficou para possuir”, seguido no v2 de uma enorme relação de terras que não haviam sido conquistadas. Nessas terras permanecia os nativos da terra com os seus costumes, seus cultos e comportamentos religiosos pagãos, que fizeram Israel tropeçar através da idolatria nos montes e das práticas espirituais como a feitiçaria, a adivinhação e a consulta aos mortos, entre outros O primeiro monarca de Israel havia começado bem, porém não tardou a desobedecer a Deus e andar em seus próprios caminhos (I Sm. 15.11), motivo pelo qual era atormentado por um espírito maligno com o consentimento do Senhor. O cântico das mulheres que exaltavam Davi ao sair para as pelejas encheu o coração do rei de inveja que, tomado por esse sentimento passou a perseguir Davi, intentando matá-lo. Porém, o que causou o desprezo de Deus por Saul e a sua rejeição completa foi o episódio onde deveria exterminar os amalequitas e não o fez (I Sm. 15.9, 23, 26; 16.1). As palavras de Samuel são contundentes: “O Senhor. Tem rasgado de ti hoje o reino de Israel, e o tem dado ao teu próximo melhor do que tu” (I Sm. 15.28). Após a morte de Samuel, Saul temendo o exército dos filisteus (I Sm. 28.5), buscou ao Senhor e não obteve respostas pelos meios de comunicação estabelecidos com o divino (I Sm. 28.6), a saber, sonhos, Urim (e Tumin) e profetas (videntes). Assim, resolveu apelar para a invocação dos mortos, buscando uma resposta no defunto Samuel através da consulta a uma pitonisa. 

Os Servos de Saul – não sabemos o nome dos servos do rei que indicaram a pitonisa e nem dos outros dois que o levaram até ela em En-Dor, uma região próxima a Gate-Hefer, no Vale de Jezreel, próximo ao Monte Tabor, tendo o Outeiro de Moré ao sul. O fato de saberem onde encontrá-la pode revelar certa crença nessa prática reprovável e condenada por Deus em sua Lei (Dt. 18.9-12, uma vez que o seu senhor havia mandado banir ou exterminar todas as feiticeiras de seu reino (I Sm. 28.9).

A Pitonisa – Uma mulher cuja atividade era invocar os espíritos dos que morreram mais conhecida como necromancia: “suposta previsão do futuro através da comunicação dos espíritos dos mortos” (Dicionário Aurélio Online). Essa mulher praticava a arte mágica e adivinhatória de forma clandestina, porque o próprio Saul havia proibido tais invocações. O nome pitonisa vem de Pitom, termo grego empregado para designar o dragão ou serpente mitológicos, que guardava o oráculo de Delfos, morta por Apolo. Por essa razão todo indivíduo que profetizasse por inspiração de Apolo, falava com a boca fechada (1), ou seja, sibilava, tal qual se vê no ventriloquismo. 

O QUE DIZ O ESPIRITISMO

O espiritismo usa esse episódio na vida de Saul para justificar a necromancia, isto é, a consulta aos mortos, afirmando que a própria Bíblia chancela os seus ensinamentos. Aliás, uma das formas de invocação aos espíritos dos mortos para a comunicação com o seu mundo é a psicografia, tão difundida pelo médium Chico Xavier. Alegam que Mateus 17 de igual modo afirmam que tal doutrina é confirmada no aparecimento de Moisés e Elias no Monte chamado da transfiguração. Alegamos que em nenhum momento Jesus invocou os mortos e que Elias de fato não morreu, sendo trasladado, e que a morte de Moisés está envolta em mistérios uma vez que o senhor Deus escondeu o seu corpo e não foi achado a ponto de Lúcifer reclamar o seu corpo, o que seria outro tema difícil. Concluímos que o Senhor Jesus ao descer do Monte advertiu os discípulos que não contassem a visão. Assim, nem o texto de I Samuel 28 e nem o de Mateus 17 servem de base para quaisquer doutrinas dos espíritas.

O QUE DIZ A LEI E OS PROFETAS?

“A feiticeira não deixarás viver”. (Êx. 22.18)

“Não se achará entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR, teu Deus, os lança de diante de ti”. (Dt. 18.9-12)
“Quando alguém se virar para os necromantes e feiticeiros, para se prostituir com eles, eu me voltarei contra ele e o eliminarei do meio do seu povo”. (Lv. 20.6)
“O homem ou mulher que sejam necromantes ou sejam feiticeiros serão mortos; serão apedrejados; o seu sangue cairá sobre eles”. (Lv. 20.27)
“Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (I Sm. 15.23)
“E queimou a seu filho como sacrifício, adivinhava pelas nuvens, era agoureiro e tratava com médiuns e feiticeiros; prosseguiu em fazer o que era mau perante o SENHOR, para o provocar à ira”. (II Re. 21.6)
“Aboliu também Josias os médiuns, os feiticeiros, os ídolos do lar, os ídolos e todas as abominações que se viam na terra de Judá e em Jerusalém, para cumprir as palavras da lei, que estavam escritas no livro que o sacerdote Hilquias achara na Casa do SENHOR.” (II Re. 23.24,25)
“queimou seus filhos como oferta no vale do filho de Hinom, adivinhava pelas nuvens, era agoureiro, praticava feitiçarias, tratava com necromantes e feiticeiros e prosseguiu em fazer o que era mau perante o SENHOR, para o provocar à ira”. (II Cr. 33.6)
“Quando vos disserem: Consultai os necromantes e os adivinhos, que chilreiam e murmuram, acaso, não consultará o povo ao seu Deus? A favor dos vivos se consultarão os mortos? À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais verão a alva”. (Is. 8.19,20)
“e dize: Assim diz o SENHOR Deus: Ai das que cosem invólucros feiticeiros para todas as articulações das mãos e fazem véus para cabeças de todo tamanho, para caçarem almas! Querereis matar as almas do meu povo e preservar outras para vós mesmas?… Portanto, assim diz o SENHOR Deus: Eis aí vou eu contra vossos invólucros feiticeiros, com que vós caçais as almas como aves, e as arrancarei de vossas mãos; soltarei livres como aves as almas que prendestes”. (Ez. 13.18-20)
“Chegar-me-ei a vós outros para juízo; serei testemunha veloz contra os feiticeiros, e contra os adúlteros, e contra os que juram falsamente, e contra os que defraudam o salário do jornaleiro, e oprimem a viúva e o órfão, e torcem o direito do estrangeiro, e não me temem, diz o SENHOR dos Exércitos”. (Ml. 3.5)
“eliminarei as feitiçarias das tuas mãos, e não terás adivinhadores”. (Mq. 5.12)
“Assim, morreu Saul por causa da sua transgressão cometida contra o SENHOR, por causa da palavra do SENHOR, que ele não guardara; e também porque interrogara e consultara uma necromante e não ao SENHOR…” (I Cr. 10.13,14)
O QUE DIZ O NOVO TESTAMENTO?
“Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam”. (Gl. 5.19-21)
“Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte.” (Ap. 21.8) 
Fora ficam os cães, os feiticeiros, os impuros, os assassinos, os idólatras e todo aquele que ama e pratica a mentira.” (Ap. 22.15)
“Os outros homens, aqueles que não foram mortos por esses flagelos, não se arrependeram das obras das suas mãos…, ainda se arrependeram dos seus assassínios, nem das suas feitiçarias, nem da sua prostituição, nem dos seus furtos.” (Ap.9.20,21)

O QUE DIZEM OS PAIS DA IGREJA, OS REFORMADORES E OS ESTUDIOSOS?
Até mesmo entre os Pais da Igreja, os Reformadores e os grandes nomes recentes da pregação e do ensino, não há consenso quanto ao assunto. A seguir uma relação dos que acreditavam na realidade do aparecimento de Samuel e dos que não acreditavam.

SAMUEL APARECEU
Justino Mártir, Orígenes, Metódio, Zeno de Verona, Diodoro de Tarso, Apolinário de Laodiceia, Ambrósio, Agostinho, Sulpicius Severus, Evódio, Dracontius, John Wesley, Adam Clarck, Chales Hodge, Ellicott, G. Campbel Morgan.

SAMUEL NÃO APARECEU
Tertuliano, Hipólito, Eustáquio de Antioquia, Efraim, Basílio, Gregório de Nissa, Jerônimo, Evagrius Ponticus, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, Teodoreto, Lutero, Calvino, Matthew Henry, John Gill. (2)

ANALISANDO O TEXTO E SEU CONTEXTO

O texto bíblico nos informa que Saul não obtinha resposta de Deus nem por meio de sonhos, urim e nem pelos profetas. Sempre que buscava uma resposta do Senhor, ia ao encontro de Samuel, que o havia separado e ungido. Samuel sentia-se responsável por Saul e tinha dó dele, mas o rei já havia sido rejeitado por Deus e não buscava ao Senhor Deus de Samuel, querendo apenas uma direção para tomar decisões e não perder o reino. A Bíblia não mostra Saul tendo uma vida de oração e dependência de Deus, mas um homem inseguro, medroso que procurou por respostas que Deus se negava a dá-las. Daí recorrer ao abominável expediente de consultar ao morto Samuel.
O fato de Saul procurar por uma pitonisa revela que ele próprio acreditava nesse tipo de comunicação. O mesmo dominava o pensamento e as crenças de seus servos, que sabiam onde encontrar uma pitonisa e levá-lo até ela. 
Ao chegar à noite na casa da feiticeira em En-Dor, o rei disfarçado foi direto ao ponto “Peço-te que me adivinhes pelo espírito de feiticeira e me faças subir a quem eu disser” (I Sm. 28.8 – ACF). A mulher argumenta no versículo 9 que está havendo uma “perseguição religiosa” naqueles dias, que essa prática é considerada ilegal no reino de Saul e que eles correm risco de vida se isso for descoberto. O rei, sem nenhum temor, faz juramento pelo Senhor que nada acontecerá àquela mulher (v.11). 
Aqui, no versículo 11, começa o problema de toda a questão: “A quem te farei subir?” pergunta a mulher e ele responde: “Faze-me subir a Samuel”. E no versículo 12, o escritor desse texto em particular, afirma que a mulher viu Samuel, gritou em alta voz e reconheceu o rei Saul. E mais: no versículo 15 diz: “Samuel disse a Saul…”, no versículo 16 “Então disse Samuel...” e no versículo 20: “… Saul (…) temeu por causa daquelas palavras de Samuel”.
E agora? Como explicar que Deus tenha respondido a Saul por meio de uma prática ilegal (contrária à Lei), abominável (detestável por Ele) e tudo isso depois de negar-lhe resposta por sonhos, urim e profetas?
Primeiro – o Senhor Jesus em Lucas 16. 19-31, na história e não parábola do Rico e do Lázaro (uma vez que parábola alguma contém nomes próprios), ensina que é impossível a comunicação com os mortos e Hb. 9.27 afirma que ao homem está ordenado morrer apenas uma vez e que após a morte segue-se o juízo. Assim, os mortos não voltam e nem se comunicam com os vivos.
Segundo – Em nenhum momento o ser invocado disse ser o profeta Samuel. Nem a própria vidente afirma tratar-se de Samuel. A mulher viu um homem envolto numa capa e deduziu que seria Samuel. A pitonisa começou a falar com o monarca como se fora Samuel e este aceitou como verdade inconteste.
Terceiro – Nem Saul e nem seus servos nada viram ou ouviram. Isso está claro na sua expressão e pergunta: “Não temas; que é que vês?” (v.13). A mulher era a intérprete entre ele e o o suposto Samuel.
Quarto – No versículo 14 esclarece “...Entendendo Saul que era Samuel”, (“Então Saul deduziu que era Samuel” BKJ), ou seja, Saul, deixou-se levar pelo seu desejo de falar com o profeta, pelo entorno, pelo pano de fundo montado: “homem”, “ancião”, “envolto numa capa”. Estava, podemos dizer autossugestionado, propenso a crer em tudo aquilo que estava acontecendo ao seu redor. 
Quinto – Não podemos esquecer que o início da sessão o rei pediu para que subisse Samuel. O filho de Ana, aquele que percorria o reino de Israel, ainda unido, desde Dã até Berseba, era conhecido por todos os habitantes daquela região e mesmo o mais simples dos homens saberia que Samuel já era um ancião e que, como todo profeta, usava uma capa. Pronto, o palco estava montado.
Quinto – Satanás, o pai da mentira (Jo. 8.44), é ardiloso e sabe como enganar os anjos (Jó 1 e 2) quanto mais os homens (II Co. 11. 14,15). Em II Re. 22.22 e I Cr. 18.5, um espírito de dispõe a ser um mensageiro de mentira na boca dos profetas. 
Sexto – O fato de o suposto Samuel falar as palavras que o verdadeiro Samuel falara não justifica a real presença do espírito de Samuel naquela sessão. Satanás também citou trechos das Escrituras para Jesus na tentação no deserto. E mais: a Bíblia King James cita “espíritos familiares”.
Sétimo – O suposto Samuel afirma que Saul e seus filhos morreriam no dia seguinte e que eles estariam com ele. É certo que eles morreram no dia seguinte, mas não todos. Também não podemos aceitar que Saul seria enviado para o mesmo lugar onde estava o profeta Samuel (há uma ressalva compreensível aqui, caso a expressão “lugar” venha ser uma referência generalizada ao Sheol/Hades, região e morada dos mortos. 
Oitavo – O narrador ou escritor desse trecho das Escrituras, estava presente, provavelmente um dos servos que acompanhavam Saul, que crendo registra ou espalha a notícia que Samuel de fato apareceu. 

CONCLUSÃO:

Não são poucos os que defendem que o espírito de Samuel realmente apareceu ali, entre eles podemos citar Augustus Nicodemus, Reverendo Presbiteriano e Ex-chanceler da Universidade Presbieriana Mackenzie, advogando que o que está em foco ali é o estado de penúria do rei e que Deus permitiu aquilo tudo para que Saul sentisse a sua culpa e o seu estado miserável. 
Igualmente não são poucos os que defendem o contrário: Warrem W. Wiersbe, em seu Comentário Bíblico do Antigo Testamento, nas páginas 302 e 303, afirma que jamais Deus poderia autorizar Samuel e participar de tal reunião, pois iria de encontro à sua própria lei e proibições e que não foi o espírito de Samuel que apareceu em En-Dor.
“Em sua Teologia Sistemática, Louis Berkhof deixa transparecer sua crença na aparição de Samuel. O dr. Norman Geisler, em seu livro Resposta às Seitas Um Manual Popular Sobre as Interpretações Equivocadas das Seitas, apenas apresenta as três interpretações que são dadas a 1Samuel 28, porém sem dar sua opinião pessoal sobre o assunto. E o irmão Josh McDowell não tem uma opinião formada sobre esse assunto” (3)
Não cremos que Deus tenha autorizado o espírito de Samuel retornar dentre os mortos para ser partícipe dessa sessão espírita. Agindo assim, Ele iria contra todos os seus princípios e infringiria as suas próprias leis e estatutos no que diz respeito às práticas pagãs de idolatria, adivinhação, necromancia, etc. Ora se Deus não falava com Saul nem por sonhos, profetas ou Urim e Tumim, falaria por um meio reprovável?
Cremos que o escritor ou narrador desse episódio, o construiu com base em suas próprias crenças e que Deus permitiu que isso fosse registrado no cânon sagrado para que víssemos o estado deplorável a que pode chegar um homem que perdeu o temor de Deus.

Abraço a todos.

Pr. Guedes.

(1) O Novo Dicionário da Bíblia, ed Vida Nova, pg.1288, citando Plutarco.
(2) Quem Falou com o Rei Saul em En-Dor?, Araújo de, Paulo Sérgio, p. 6, citado no site: https://www.imortalidadedaalma.com/wp-content/uploads/Saul-e-a-pitonisa-de-En-Dor-Compreendendo-1Samuel-282.pdf